A colisão dos mundos(Para Maria Helena, a hipocondríaca mais cativante que já vi; Confidente e sabida de meu afeto)Era noite, a rua ainda não estava vazia e ouviam-se latidos sem casa. Mesmo com o som alto, conseguiu ouvir a campainha. Levantou-se e foi logo abrir o portãozinho, pois já sabia quem era, mas mesmo assim espiou pelo 'olho-mágico'(só por precaução).
-
Que bom que você veio!Alguma novidade entre as noites de insônia e as manhãs de pílulas?-
-Encontrei um analgésico mais eficaz. E você? Tem criado algo novo? Ou já se rendeu ao tédio? -
Resolvi me render ao tédio... Ando um pouco cansada e decidi dar-me férias de mim mesma. Mas olha só! -E acabou por apontar para a pequena horta de ervas.
A noite estava escura e a lâmpada pouco iluminava, porém o verde das plantas era tão intenso que sobressaia na escuridão.
Chegaram mais perto,
uma ajoelhada e a
outra sentada em um banquinho de tijolos, até sentirem o aroma do hortelã.
-
Eu tive uma idéia...-
Desista! Odeio chá!-
Você vai gostar...-
Não, eu não vou gostar! Meu negócio é café!-
Por isso mesmo você vai gostar! Agora você vai me ajudar a côlher um pouco de hortelã aqui...
-
Melhor você côlher. Não levo jeito pra isso e da sua horta você entende. -Em um gesto simples, apoiou os braços nos joelhos entreabertos.
-
Vou pegar de você aqui, tá? -Sussurrou aos raminhos.
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Essa é boa... -Olhou para um lado e quase riu -
Eu não quero nem pensar que eu já entendi a asneira que você vai fazer... -
Cheira esses raminhos de hortelã... e esse de manjericão.
-
Melhor não usar manjericão... Eu acho que vai ficar estranho. Muito estranho. -
O manjericão vai dar o diferencial.-
Diferencial... Até que o cheiro não é ruim,viu?!...ATCHIM!-
Já vi alergia à cremes, à chocolate e até à frutas. Mas você é a primeira, e talvez única, a ter alergia à ervas! Impressionante!
-
Pare de...ATCHIM! Pare de me fazer de chacota! Essa hortelã...ATCHIM! O cheiro é forte e eu não estou acostumada! -
Claro! Óbvio e evidente! Usas tanto remédio, que, praticamente, perdestes teu sistema imunológico!
-
Você parece uma mãe atazanando a filha bêbada.-
E hipocondríaca! Bêbada e hipocondríada!
-
Você também gosta de beber... -
Não para me anestesiar! Mas que importa?
-...Se você gritasse dentro do meu estômago, ecoaria.-
Então vamos para a cozinha.Levantaram-se juntas,
uma foi para a cozinha e a
outra ficou na sala para aumentar o volume ao máximo enquanto o nariz escorria depois de tanto espirrar.
A música era rápida e crua, quase podre. Elas gostavam de ouvir aquele timbre inacabado, quase podre.
A
figura excêntrica que voltava da cozinha resolveu baixar um pouco o volume. Estava impossível manter um diálogo àquela altura.
Na cozinha,
uma sentou-se e a
outra foi ver a água.
-
Já ferveu, não?-
Parece que sim... Eu vou fazer uma infusão. -
Fale a minha língua.-
Em resumo: Vou apagar o fogo, colocar os vegetais dentro e tampar para que não escape o vapor. É o melhor processo para se conservar as propriedades da planta, sabia?
-
Não. Quem entende de chá, aqui, é você.-
Agradeço aos chineses... -Suspirou -
Mudando de assunto... Eu gostei de ver você espirrar... -Olhou-a como se fosse cúmplice.
-
Agora meu nariz escorre e a culpa é sua. -Disse fria, porém irônica.
-
Gostei porque te mostra humana. Você não é tão fria quanto parece ser. -
Traga o café.-
Aqui o café e o açúcar.
-
E a colher?-
Aqui. Como eu ia dizendo, você tem uma subjetividade objetivista. É...Eu vou pegar o chá.-
Um dia eu ainda me canso de suas idéias... -
Cansa nada! -Debochava enquanto servia o chá nos copos contendo café e açúcar. O vapor era muito agradável.
-
Se eu vomitar por causa disso, a culpa também vai ser sua. -Era um tom quase ameaçador; apesar de, no fundo, não haver seriedade ou promessas naquelas palavras ditas.
-
Acho que não ficou bom. Nunca mais faça essa porcaria.-
Mas também não ficou de todo ruim!
-
Talvez eu tenha me enganado... A primeira sensação foi o amargor das ervas que depois fundiu-se com o sabor do café. Preciso deixar o orgulho de lado e te dar os parabéns.-
Por quê?... -Disse fingindo não saber o porquê.
-
Você encontrou a única maneira de me fazer beber chá.-
Eu apenas uni o útil ao agradável. -
Qual o lado útil?-
Você vir me visitar mais vezes. Um ótimo pretexto, não?
Encararam-se por um certo tempo. Podiam até se comunicar com olhares, mas preferiam as palavras.
-
Vamos tomar ar fresco?-
Morreremos de calor se ficarmos aqui! -E levantou-se exausta.
Ambas sentaram no banquinho e contemplaram o céu escuro no silêncio. De repente a música continuou, se juntando com a música dos vizinhos e os cri-cris dos grilos. Mas, ali, só uma barata era testemunha.
A
outra acendeu um cigarro.
-
Como vai sua filha?
-
Bem. Esta semana ela fêz um boneco com palitos de picolé e me dêu para que eu colocasse na estante, ao lado da nossa foto. -
Ela está na casa do pai?-
Não... Vai passar dois dias dormindo na casa dos pais daquele imbecil. -Ao lembrar do ex-marido uma espécie de rancor lhe subiu à cabeça -
E sua criança? Onde está?-
Minha florzinha? Na casa de uns amigos meus...-
Você confia neles?-
É um casal gay.
-
Compreendo...-
Da próxima vez, não fume perto de mim. -A
outra olhou-a com um pequeno interrogação na testa.
-
Você gostaria que eu me masturbasse do seu lado?
-
Foda-se. -Respondeu apáticamente e levantou-se -
Preciso ir agora.-
Quando vamos nos ver?-
Quando você fizer café com chá.-
Ou quando nossas meninas se encontrarem. -Completou.
Sorriam discretamente ao invés de se despedirem.
A
anfitriã abriu o portãozinho para que sua
visitante pudesse ir embora.
Não gostavam de despedidas.