sábado, 15 de março de 2008

Café com hortelã

A colisão dos mundos
(Para Maria Helena, a hipocondríaca mais cativante que já vi; Confidente e sabida de meu afeto)

Era noite, a rua ainda não estava vazia e ouviam-se latidos sem casa. Mesmo com o som alto, conseguiu ouvir a campainha. Levantou-se e foi logo abrir o portãozinho, pois já sabia quem era, mas mesmo assim espiou pelo 'olho-mágico'(só por precaução).
-Que bom que você veio!Alguma novidade entre as noites de insônia e as manhãs de pílulas?-
-Encontrei um analgésico mais eficaz. E você? Tem criado algo novo? Ou já se rendeu ao tédio?
-Resolvi me render ao tédio... Ando um pouco cansada e decidi dar-me férias de mim mesma. Mas olha só! -E acabou por apontar para a pequena horta de ervas.
A noite estava escura e a lâmpada pouco iluminava, porém o verde das plantas era tão intenso que sobressaia na escuridão.
Chegaram mais perto, uma ajoelhada e a outra sentada em um banquinho de tijolos, até sentirem o aroma do hortelã.
-Eu tive uma idéia...
-Desista! Odeio chá!
-Você vai gostar...
-Não, eu não vou gostar! Meu negócio é café!
-Por isso mesmo você vai gostar! Agora você vai me ajudar a côlher um pouco de hortelã aqui...
-Melhor você côlher. Não levo jeito pra isso e da sua horta você entende. -Em um gesto simples, apoiou os braços nos joelhos entreabertos.
-Vou pegar de você aqui, tá? -Sussurrou aos raminhos.
-Essa é boa... -Olhou para um lado e quase riu -Eu não quero nem pensar que eu já entendi a asneira que você vai fazer...
-Cheira esses raminhos de hortelã... e esse de manjericão.
-Melhor não usar manjericão... Eu acho que vai ficar estranho. Muito estranho.
-O manjericão vai dar o diferencial.
-Diferencial... Até que o cheiro não é ruim,viu?!...ATCHIM!
-Já vi alergia à cremes, à chocolate e até à frutas. Mas você é a primeira, e talvez única, a ter alergia à ervas! Impressionante!
-Pare de...ATCHIM! Pare de me fazer de chacota! Essa hortelã...ATCHIM! O cheiro é forte e eu não estou acostumada!
-Claro! Óbvio e evidente! Usas tanto remédio, que, praticamente, perdestes teu sistema imunológico!
-Você parece uma mãe atazanando a filha bêbada.
-E hipocondríaca! Bêbada e hipocondríada!
-Você também gosta de beber...
-Não para me anestesiar! Mas que importa?
-...Se você gritasse dentro do meu estômago, ecoaria.
-Então vamos para a cozinha.
Levantaram-se juntas, uma foi para a cozinha e a outra ficou na sala para aumentar o volume ao máximo enquanto o nariz escorria depois de tanto espirrar.
A música era rápida e crua, quase podre. Elas gostavam de ouvir aquele timbre inacabado, quase podre.
A figura excêntrica que voltava da cozinha resolveu baixar um pouco o volume. Estava impossível manter um diálogo àquela altura.
Na cozinha, uma sentou-se e a outra foi ver a água.
-Já ferveu, não?
-Parece que sim... Eu vou fazer uma infusão.
-Fale a minha língua.
-Em resumo: Vou apagar o fogo, colocar os vegetais dentro e tampar para que não escape o vapor. É o melhor processo para se conservar as propriedades da planta, sabia?
-Não. Quem entende de chá, aqui, é você.
-Agradeço aos chineses... -Suspirou -Mudando de assunto... Eu gostei de ver você espirrar... -Olhou-a como se fosse cúmplice.
-Agora meu nariz escorre e a culpa é sua. -Disse fria, porém irônica.
-Gostei porque te mostra humana. Você não é tão fria quanto parece ser.
-Traga o café.
-Aqui o café e o açúcar.
-E a colher?
-Aqui. Como eu ia dizendo, você tem uma subjetividade objetivista. É...Eu vou pegar o chá.
-Um dia eu ainda me canso de suas idéias...
-Cansa nada! -Debochava enquanto servia o chá nos copos contendo café e açúcar. O vapor era muito agradável.
-Se eu vomitar por causa disso, a culpa também vai ser sua. -Era um tom quase ameaçador; apesar de, no fundo, não haver seriedade ou promessas naquelas palavras ditas.
-Acho que não ficou bom. Nunca mais faça essa porcaria.
-Mas também não ficou de todo ruim!
-Talvez eu tenha me enganado... A primeira sensação foi o amargor das ervas que depois fundiu-se com o sabor do café. Preciso deixar o orgulho de lado e te dar os parabéns.
-Por quê?... -Disse fingindo não saber o porquê.
-Você encontrou a única maneira de me fazer beber chá.
-Eu apenas uni o útil ao agradável.
-Qual o lado útil?
-Você vir me visitar mais vezes. Um ótimo pretexto, não?
Encararam-se por um certo tempo. Podiam até se comunicar com olhares, mas preferiam as palavras.
-Vamos tomar ar fresco?
-Morreremos de calor se ficarmos aqui! -E levantou-se exausta.
Ambas sentaram no banquinho e contemplaram o céu escuro no silêncio. De repente a música continuou, se juntando com a música dos vizinhos e os cri-cris dos grilos. Mas, ali, só uma barata era testemunha.
A outra acendeu um cigarro.
-Como vai sua filha?
-Bem. Esta semana ela fêz um boneco com palitos de picolé e me dêu para que eu colocasse na estante, ao lado da nossa foto.
-Ela está na casa do pai?
-Não... Vai passar dois dias dormindo na casa dos pais daquele imbecil. -Ao lembrar do ex-marido uma espécie de rancor lhe subiu à cabeça -E sua criança? Onde está?
-Minha florzinha? Na casa de uns amigos meus...
-Você confia neles?
-É um casal gay.
-Compreendo...
-Da próxima vez, não fume perto de mim. -A outra olhou-a com um pequeno interrogação na testa.
-Você gostaria que eu me masturbasse do seu lado?
-Foda-se. -Respondeu apáticamente e levantou-se -Preciso ir agora.
-Quando vamos nos ver?
-Quando você fizer café com chá.
-Ou quando nossas meninas se encontrarem. -Completou.
Sorriam discretamente ao invés de se despedirem.
A anfitriã abriu o portãozinho para que sua visitante pudesse ir embora.
Não gostavam de despedidas.

8 comentários:

Maria Helena Sobral disse...

Melhor que eu mesma me interpretando!
Barbie, Barbie, do coração despedaçado e do rosto destroçado...me encantas!

Daniele B. disse...

E seria assim mesmo o real.
Pelo menos na parte de M.H.
Foi incrível a narrativa. Adorei barbie*. "Tinhas que ser uma dessas* fora do padrão mesmo, admiro-te"
Xeros.

Anônimo disse...

Bem, sou meio suspeito para falar qualquer coisa, pois conheço pouco o contexto, ainda não me habituei, mais por motivo de contato e convivência do que por resistência, mas confesso que o estilo me agradou um bocado. Tem muito em poucas palavras.
Se continuar assim, serei assíduo. ;P

Marília disse...

Aiiiii, que perfeito!!!!!!
=D

pra completar: reverências..
E, sim, Dona Barbie; sua opinião é sempre bem-vinda!
;*

Sofia O. disse...

É, despedidas também não agradam. Prefiro encontros!

Anônimo disse...

Colega,
parabéns pelo seu blog viu?
Apesar de ser de uma vertente literária diferente do que estou acostumado, admiro muito essa capacidade de criação.
Tb gostei muito do título, bastante original.

Bjs!

Barbie Destrossada(sic) disse...

Obrigadas! ;]
Muitos, muitos!

Sofia O. disse...

É que a sinceridade sempre flui de ti. Parece Deusa.

Amo-te.